terça-feira, 9 de outubro de 2012

Coração na mão como o refrão de um bolero

Dias e noites de trabalho intenso como uma forma inevitável de burlar a dor. As paredes do apartamento se assemelhavam a uma prisão sem grades. Qualquer um poderia jurar que ele estava bem. Menos Vitor.  Após meses imerso em seu mundo que se resumia ao trabalho e a sua casa, decidiu sair para dar uma volta, naquela noite fria de sexta-feira. Dirigiu sem destino certo. Passou em frente a um bar e resolveu parar ali. Entrou, acenou para rostos conhecidos, mas conversar sobre qualquer assunto não estava nos seus planos. Apenas desejava um antídoto para esquecer. Sentou-se. Mal conseguia prestar atenção na moça de cabelos loiros que cantava à sua frente.  O pensamento vagava. Só um chopp não seria problema pra voltar pra casa mais tarde. Talvez não tão tarde...
Escapar da dor era sua eterna missão. Fingir que ela não existia, espantar as lembranças  como quem sacode as mãos diante de uma incômoda fumaça de cigarro. Viver como se ela não estivesse ali, caminhando lado a lado com ele. Era forte o bastante. Com a hombridade de quem supostamente não se permite sentir. Sim, supostamente. Pouco importava a solidão de seus dias, as ocupações preenchiam o vazio provocado por ela. Era perfeitamente capaz de sobreviver...ou ao menos parecia, antes de ouvir o som que soou como se fosse capaz de lhe rasgar o peito. Não havia percebido que a moça de cabelos loiros havia saído do palco. Mas seu coração se partiu ao ouvir as primeiras notas cantadas por aquela voz conhecida...e tão mais bonita do que quando falada. Paralisou ao ver, saindo de trás das cortinas, os longos cabelos negros cujo brilho era tão familiar. Inacreditável. Aqueles olhos, aquela pele de uma nuance tão singular destacada no vestido vermelho. Aquela voz que até então ele desconhecia a capacidade. Nunca soube como Luciana cantava bem.  Nunca imaginou que ela soubesse dedilhar um violão. E menos ainda, que ela pudesse estar tão bem sem ele. De repente percebeu que não sabia quase nada a respeito daquela garota que um dia  jurou conhecer como a palma de sua mão. Percebeu que poderia muito bem, com sua presença, haver impedido de alguma maneira que aquela flor desabrochasse. E agora ela estava ali, encantando seus olhos como a mais bela rosa e ferindo-o com os espinhos de sua resiliência. Os olhares se encontraram. Apesar da surpresa, Luciana manteve o tom. Por que aquela visão, tão bela, parecia tão assombrosa para Vitor? Seria Luciana a última pessoa a quem ele esperava encontrar ali, ainda mais em tais circunstâncias? Uma a uma, as canções do repertório cantavam recordações. Vivências. Momentos felizes. Desconfianças. Desentendimentos. Mentiras. Adeuses. Recomeços. Ciclos. Finais. Um set list que parecia ter sido montado e ensaiado cuidadosamente para aquela ocasião...se aquele encontro não tivesse sido obra do acaso. Ele quis ceder ao impulso de sair  correndo dali, mas era forte, lembram-se? Não podia. Lágrimas que não ousaram sair dos olhos, muito embora estivessem ali. A última canção. Olhares encontraram-se mais uma vez antes de Luciana deixar o palco. Vitor já tinha visto e ouvido demais naquela noite. Foi um erro ter saído de casa. A dor nunca esteve tão presente desde a última despedida. 
No estacionamento, frio e garoa sob luzes artificiais. Entrou no carro e, ao dar partida, a sensação de estar sendo observado. Ignorou a imagem refletida no espelho retrovisor, vestindo aquele casaco que ele conhecia bem. Mas o coração não conseguia ignorá-la. 'Ela está feliz agora', pensou. E foi embora. Decidiu seguir em frente, sem olhar para trás.