terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Quando o amor e a morte se abraçam

Eram 6 da manhã. A inquietude tomava conta do coração de Carolina descontroladamente. Aquela era apenas mais uma das inúmeras noites de insônia, não fosse pelo último telefonema. O último de muitos não atendidos, mas por algum motivo dessa vez ela quis atender. Aquela voz familiar que respondeu ao seu 'alô' apenas sussurrando seu nome repetidas vezes, 'Carolina, Carolina...' e então desligou. Ela não queria ouvir voz alguma, muito menos aquela. Por que as pessoas são assim? Praticamente imploram pra que você saia de suas vidas, e quando você finalmente vira as costas e consegue seguir seu caminho em paz, elas decidem reaparecer. Como mortos levantando de suas tumbas. Enxergando virtude onde antes não viam. Sentindo saudade do que antes ignoravam. As pessoas são exatamente assim, é a velha história de só dar valor ao se perder, e de gostar daquilo que não mais se pode ter. Carolina se sentiu incomodada. Não por ainda haver qualquer vestígio de sentimentos por Talles - ela sabia que não mais existiam. Que já havia dado o adeus definitivo e que seu coração estava livre, mas por que aquela insistência em falar com ela após tanto tempo a irritava? E irritou ainda mais a covardia de não conseguir dizer mais nada além de seu nome repetidas vezes. 'Ele sempre foi covarde', pensava. Mas Carolina não tinha paciência pra covardia. E sabia que a raiva ainda existia. O rancor. As mentiras ainda doíam. Carolina colocou-se a pedalar naquela manhã de domingo, e pedalava o mais rápido que podia, na tentativa de expulsar todo aquele incômodo. Na tentativa de mandar pro inferno qualquer lembrança de Talles. Foram muitos cafés durante toda a madrugada e o cansaço certamente se devia à mesma sucessão de fatos sem sentido que se repetiam em sua vida de tempos em tempos. Mas essa havia sido a última vez. Carolina jurou pra si mesma. Sabia do poder das palavras, mas principalmente do querer da mente. Há momentos na vida em que é preciso enterrar os mortos de uma vez, porque nenhum amor de mentira, de plástico, pode sobreviver por muito tempo. Carolina chegou com sua bicicleta na rua em que Talles morava. Não teve dúvidas e tocou a campainha sem pestanejar. Demorou um pouco para que Talles saísse, mas logo ali estava ele, com seu moletom surrado e os cabelos despenteados. Parecia feliz ao vê-la.

- Você veio...

 Carolina foi ríspida:

- Vim devolver suas coisas. 

Carolina jogou a sacola com os livros e jogos de Talles no portão. E antes que ele pudesse dizer qualquer palavra, perplexo que estava, ela continuou:

- Não me ligue, não me procure. Não tenho mais nada a tratar com você. 

Talles tentou inutilmente rebater, porém era tarde demais pra argumentar o que quer que fosse. Carolina virou as costas e foi embora com sua bicicleta enquanto Talles falava sozinho. Ter devolvido as coisas dele era como se cortasse de vez qualquer vínculo inútil que ainda pudesse existir. 'Não olhe pra trás e nunca mais você volta', ela dizia a si mesma. Nem demandaria esforço.
O tempo passou e eles nunca mais se viram, nem se falaram. Mesmo morando no mesmo bairro. E foi assim que o amor e a morte se abraçaram mais uma vez...pela última vez.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

No inverno fica tarde mais cedo

Chovia e eu decidi caminhar por aí sem rumo. Observava o céu se enegrecer como o meu coração. O céu, que durante todo o dia havia permanecido cinza. Como o meu coração. Deixei que a chuva caísse sobre o meu corpo. Eu não tinha porque fugir dela. Havia coisa mais grave da qual eu, sem muito esforço para tanto, não havia conseguido escapar mesmo. Eu me senti como uma peça num jogo de xadrez, movida por uma força maior que tentava me descartar, mas eu teimava e me esforçava pra permanecer no jogo. Eu não sabia que era um jogo.
Hoje tudo está tão claro, ao contrário desse céu que está sobre mim. Não há guarda-chuva que proteja quando ela cai, impiedosa, e te acerta. E ela machuca. Nem mesmo sei como denominá-la. Sei que um dia é paraíso, no outro é inferno. Sei que escurece rapidamente, como um fim de tarde no inverno. Sei que queima, mas não aquece. Sei que, assim como a rua na qual caminho agora, tudo o que fica é um deserto e um silêncio quase mórbido.
Não é irônico que aquilo que você busca pra te preencher te deixe tão vazio no final? O final. É tudo que eu desejo agora, que essa loucura tenha fim. Que a chuva lave minha alma e leve toda impureza de um coração enegrecido. Vou trancá-lo a sete chaves e jogá-las fora, por diferentes cantos do mundo, um bem distante do outro.
Deitado em minha cama, ainda sinto a chuva. Nuvenzinha negra pairando sobre a minha cabeça, que cochicha em meus ouvidos que o fantasma ainda não se foi. Fantasmas não são possíveis de se enxergar e não te fazem companhia. Fantasmas só assustam e angustiam. Mas, nessa noite chuvosa de inverno em minha vida, nessa noite que parece que não tem mais fim, uma única certeza me consola: fantasmas não existem. Só espero que meu coração não leve tanto tempo pra perceber isso.
É tarde, o sono não vem. Taças de vinho são testemunhas das minhas dúvidas que, por medo, tanto hesitaram para se afirmar certezas. Mas não teve jeito, elas me sufocaram, então eu tive que obrigá-las a sair de mim ou não conseguiria mais respirar. Elas saíram, em forma de palavras, palavras verdadeiras, sinceras como não se pode ser. Ia doer de qualquer forma, eu precisava respirar. Respirando, eu saberia que iria sobreviver. Mais uma vez.
Eu perdi a direção, e o caminho que por um tempo segui confiante se tornou um labirinto. E o céu enegreceu. No inverno fica tarde mais cedo. E eu havia me esquecido que era inverno em minha vida, que a primavera demoraria a chegar, e me precipitei: choveram sentimentos indevidos pros quais eu não tinha preparo. O fogo ilumina muito por muito pouco tempo. E era fogo o que eu achava que era a luz do sol. Era só uma chama que a chuva apagou. Já é tarde e está escuro. E eu espero acordar, tão depressa e poder deixar o sol entrar. Nem que seja pela porta que você deixou aberta ao sair.
E que tudo não passe de lembranças vagas de um passado que passou.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

E parecia que era minha aquela solidão

Fazia frio intenso. Marco permanecia parado na porta da biblioteca da faculdade. Apenas observava Alana. Que por sua vez, não conseguia se concentrar no relatório que digitava em seu notebook. Seu pensamento estava longe após descobrir que o rapaz a quem amava estava em outra. Outra garota. Ocupando o lugar que Alana julgava que deveria ser dela. Marco sabia bem desse amor que Alana sentia.  Talvez porque qualquer dia desses ela havia deixado uma carta cair na sala, no horário da saída. Marco havia encontrado a carta e guardado consigo. No fundo ele desejava que aquelas palavras fossem direcionadas a ele. E não compreendia porque Alana insistia em manter um sentimento por alguém que a ignorava completamente. Mesmo que ele também, por muitas vezes, já tivesse passado por isso. 
Ela sempre sozinha, arredia e de poucas palavras. Discreta, falava baixo e era difícil ler o olhar por trás de seus óculos. No fundo, ela tinha medo. Talvez, estivesse cansada demais para permitir que adentrassem seu mundo novamente. Afinal, sempre acabou mal.  Ele, o típico bom moço. Tímido. O amigo sempre presente. Mas era sempre difícil se aproximar de Alana. Era como se houvesse uma barreira em volta dela. Tinha medo de parecer invasivo, inconveniente, então sempre preferiu admirá-la de longe. Ele, dedicando-se a esse amor platônico. Ela, presa a um amor não correspondido. Algumas carteiras os separavam na sala, no momento das aulas. Mas nada os separava mais do que os muros construídos por sentimentos tão conturbados. 
Naquela noite, alguma coisa fez com que Marco tivesse coragem de se aproximar. Deixou o medo e a timidez de lado e foi até ela. Nunca antes havia conseguido estender a conversa além de um 'olá, tudo bem? Tudo'. Mas dessa vez ele tinha que tentar.
- Oi. Me desculpe por interromper você, mas...eu estou com um par de ingressos para a peça que irá estrear esse fim de semana. - constrange-se com o olhar de reprovação de Alana, mas ainda assim, continua - eu estive pensando se...se você não gostaria de ir comigo - concluiu, meio sem jeito.
Alana inventou uma desculpa qualquer, muito educadamente,  para não aceitar o convite. Ainda assim, deixou o notebook  de lado e se dispôs a conversar. Assuntos rotineiros, e sempre com uma pausa de silêncio constrangedor.
- Devo confessar a você que não estou conseguindo me concentrar neste relatório - Alana deu um riso de leve.
- Por que você não vem tomar um café comigo? Talvez te distraia um pouco, e depois você retoma o seu trabalho mais tranquila.
- Me desculpe. Realmente preciso terminar esse relatório com urgência. Mas agradeço sua atenção, muito obrigada mesmo!
Na verdade, o relatório nem era tão urgente. Urgente mesmo, era a sua dor. Sua solidão. 
Marco se despede e vai, cabisbaixo, tomar o seu café sozinho. Sozinho. Ele era de poucos amigos, mas tinha amigos. Alana estava sempre sozinha e isso o intrigava. Não era possível compreender porque a solidão dela doía tanto nele. Sentia que ela precisava ser salva. Mas sabia que não poderia forçar nenhuma situação, ainda mais agora, após essa reação. Ao mesmo tempo que não queria entender como ela conseguia se dedicar tanto àquela dor, como se gostasse de senti-la, no fundo ele compreendia por já haver estado lá também. Lá, naquele estado, em que existe meio que um masoquismo em relação a dor do amor que não vinga.