terça-feira, 8 de julho de 2014

E não tem mais nada, negro amor...

Todos os fins de tarde Rafael fazia o mesmo ritual: chegava do trabalho, comia algo, tomava um banho e subia para o seu quarto bagunçado, onde ligava a TV e acompanhava as notícias do dia, para então se desligar da realidade e ler algum livro ou jogar videogame. E regradamente, no mesmo horário, parava o que estava fazendo para observar, da fresta da janela, aquela que sempre fazia o seu coração vibrar. Leticia passava por ali todos os dias voltando do curso que fazia, carregando seus livros, sempre tão distraída. Eles moravam no mesmo condomínio e nunca haviam se falado. Já fazia muito tempo que Rafael sentia vontade de se aproximar, mas o medo e a timidez não permitiam. Aqueles eram tempos anteriores à internet e o pouco que Rafael sabia sobre Leticia era através de alguns conhecidos em comum. Esse pouco havia sido o bastante para que se interessasse em saber mais sobre a moça de longos cabelos castanhos e um olhar enigmático que tentava se esconder atrás de seus óculos. Em frente à janela do quarto de Rafael haviam árvores e um banco. Era naquele banco que ele sempre imaginava que se sentaria algum dia para conversar com ela.
Foram longos meses até uma primeira aproximação, que aconteceu com ajuda dos amigos em comum. Leticia, que já havia observado Rafael algumas vezes, também se sentiu atraída pelo seu jeito jovial de ser, e se encantava com suas sutilezas e gentilezas, enquanto ele tentava decifrar seu olhar tímido, que teimava em tentar esconder-se. Muitos encontros e passeios depois, a relação estava consolidada.
Dois anos depois do início do namoro, os pais de Rafael mudaram-se de cidade por conta do trabalho, e algum tempo depois, ele e Leticia decidiram morar juntos naquela casa e dividir suas vidas um com o outro, num 'pra sempre' sem garantias.
O tempo passou. Dez anos se passaram. E o que o tímido olhar de Leticia não havia revelado naquele tempo, foi descoberto com a convivência: ela era dona de um espírito inquieto, agitado, que não se adaptava à rotina, à mesmice, aos dias iguais. O que as gentilezas de Rafael não disseram quando se conheceram, era sobre o seu lado infantil e muitas vezes egoísta, que o cegava diante das necessidades dos outros, muitas vezes. Ainda assim, aquele amor sobreviveu por muito tempo.
Agora, olhando pela mesma janela, Rafael custava a acreditar e aceitar o que estava acontecendo. Enquanto tentava digerir as palavras escritas num bilhete curto e grosso de despedida deixado por Leticia, e fingir que o guarda-roupas vazio era só um pesadelo, ele se perguntava em que momento as coisas começaram a se perder entre eles; quando deixaram de dialogar, onde ficou todo aquele encanto do início...e onde ele estava com a cabeça por haver deixado tudo se tornar monótono e o distanciamento passar quase despercebido até então...e tudo que ela tentava lhe dizer tantas vezes até aquele dia, e que ele insistia em não querer ouvir, começava a fazer sentido, agora.
Mas era tarde demais para questionamentos e percepções. Ele não sabia para onde ela havia ido, onde estava, o que faria daqui pra frente sem aquela a quem aprendeu a agarrar-se nos momentos mais difíceis. Entre o medo do futuro e a esperança de que ela retornasse algum dia, ficava a necessidade de seguir com a rotina diária. A mesma rotina que eles não conseguiram tornar interessante o bastante para que o amor continuasse vivo, presente. 
Naquela noite de sábado, após um dia inteiro de um porre que anestesiava, mas não o ajudava a entender, as únicas cores e vozes presentes vinham da TV. Porque na mente e no coração de Rafael tudo ficou escuro e ele se sentia perdido, como num labirinto. Porque às vezes é preciso a perda, é preciso o choque, é preciso que a vida nos chacoalhe para acordarmos nos darmos conta do que estamos a fazer com ela. Do tempo que estamos perdendo. Da atitude que não tomamos. Das palavras que insistimos em não ouvir e não dizer. Do que estamos deixando escapar. E o que fica depois do adeus são dúvidas e a chance que a vida nos dá de reavaliar o modo como conduzimos nossas relações e, quem sabe, aprender alguma coisa com isso. 

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