quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sobre renascer das cinzas

Seria apenas mais um dia, mais uma manhã de sábado qualquer, o esforço para acordar cedo iria se dever apenas ao cansaço, se não fosse toda a dor contida no coração de Mariana, sobrevivente de mais um desmoronamento dentro de si. O esforço para entender que precisava continuar, seguir adiante com a rotina, com seus planos, ser forte por si mesma, era imenso e não a havia deixado dormir na noite anterior, apenas mais uma imersa em lágrimas; lágrimas essas que ela não ousava permitir que se atrevessem a sequer marejar seus olhos diante de quem quer que fosse. Guardava para si sua dor, somente seu travesseiro, os bichos de pelúcia e as paredes do quarto poderiam saber. E naquela manhã ela seguia para o curso de pós-graduação enquanto tentava engolir a seco aquele nó na garganta que quase lhe tirava o ar, por vezes. Olhar pela janela do ônibus e ver o céu cinza era como olhar para dentro de seu coração e ver tudo o que restou daquele amor que parecia coisa de filme, que parecia que iria durar para o resto da vida, que parecia verdadeiro, indestrutível. E agora, tudo que restava eram escombros em seu coração, e a dor esmagando o peito sem piedade. Mas Mariana vestia sua armadura todos os dias, colocava sua máscara com sorriso no rosto e evitava ter que responder qualquer pergunta, alimentar qualquer curiosidade e mexer ainda mais na ferida, aberta, viva, latejando. 
Chegando na faculdade, encontrou as amigas com quem conversou sobre assuntos banais. A primeira aula começou e era difícil se concentrar, mas ela precisava. Palavras, palavras e mais palavras que saiam da boca da professora, e que seus pensamentos a impediam de ouvir. Até que a professora propôs uma atividade a qual denominou "Escrita Criativa": os alunos deveriam observar uma sequência de imagens e ir escrevendo um texto sobre elas, sem pensar muito, apenas teriam que observar as imagens e deixar que as palavras surgissem, colocando-as no papel. E assim, as imagens começaram a surgir numa grande tela, projetadas pelo data show: uma janela, uma penteadeira antiga, uma estrada sombria, escadas descendo, uma lápide, fogo, uma sala com móveis velhos e empoeirados, uma árvore, um avião, uma praia e um jardim com diversas flores. E assim, as palavras de Mariana começaram a nascer no papel.
A sequência de imagens foi projetada duas vezes, e então a professora anunciou o término do tempo para a escrita. E solicitou que alguns alunos  se prontificassem a ler seus textos. Uma aluna leu seu poema, que tratava de assuntos relacionados a sua família. Mariana sentiu vontade de ler o seu, também. Sentia-se calma, pensou que leria sem problemas, pois tinha desenvoltura ao se expressar e apresentar-se em público. Levantou a mão quando a professora solicitou um próximo voluntário e iniciou a leitura de seu texto:

"Olhei através da janela da minha alma, tentando compreender o que havia acontecido. Era como ver, refletido num espelho qualquer, tudo que era difícil demais para os olhos aceitarem. Conforme me aproximava de mim mesma, era como caminhar por uma estrada obscura em direção ao que até então eu não sabia. Era difícil aceitar os fatos. Era uma pequena morte dentro de mim. Desejei queimar cada lembrança, já envelhecida, e tirar o pó de dentro do meu coração. Desejei que tudo não passasse de um pesadelo...

Nesse momento, a leitura de Mariana foi interrompida por lágrimas que subitamente surgiram, impetuosas, sem que ela conseguisse contê-las, de uma forma tão brusca e intensa, que parte dos alunos e mesmo a professora choraram junto com ela. Todos pensavam que Mariana largaria o caderno e fugiria da sala, para chorar longe, para se esconder. Mas ela sentia que tinha que ser forte para, ao menos, conseguir enfrentar aquelas palavras, que descreviam sua dor, até o fim. Então, mesmo trêmula e chorosa, ela respirou fundo e continuou, com a voz um tanto falha:

"...Desejei partir numa viagem rumo ao esquecimento e começar tudo de novo, como uma árvore que na primavera volta inteira do inverno, conseguindo novamente produzir seus frutos. Queria encontrar a paz. Chegar à superfície depois de nadar com tanto esforço naquele oceano de dor. Conseguir novamente colher flores no jardim da vida."

Ela sentou-se e enxugou as lágrimas. Houve palmas e o abraço das amigas, que nem sequer sabiam sobre aquele amor perdido, tamanha era a vontade de Mariana de enterrar aquela história sem contá-la pra ninguém. A professora dizia que reações como aquela poderiam ocorrer e que isso era bom, porque Mariana havia externado sua dor. Mariana era acostumada demais a ocultar suas dores. Porém naquele dia não se sentiu envergonhada de suas lágrimas: elas haviam lhe lavado a alma. 
Seus dias de solidão se seguiram, e da solidão ela retirava forças. Para continuar, superar, recomeçar. E daquele amor, cuja mentira destruiu transformando-o em cinzas, só lhe restou ressurgir como uma Fênix, caminhando sobre os escombros, retirando todo o entulho e deixando o espaço livre para, quem sabe algum dia, construir uma nova história...


2 comentários:

Ellen Visitário disse...

Que orgulho que eu tenho dessa Mariana. Soube fazer da dor um caminho em busca de alívio. E que assim outras meninas, mulheres, senhoras possam ser como a Mariana: fortes!

Belíssimo texto!

Beijos!

Adriana disse...

Mari.. vc tem o dom da escrita, sem duvida. Me lembro desse dia e me emocionei muito e hj mais uma vez..
Aparentemente tao forte e decidida, realmente, quem imaginaria tanta dor.
Te desejo muita felicidade, do fundo do meu coraçao, pessoas como vc são raras e especiais, que sorte a minha conhecer alguem como vc! Que Deus te abençoe e te guie sempre ! Um beijo
Adriana